NOTÍCIAS


10/08/2016
O ouro de Rafaela Silva e a fábula da meritocracia

A conquista da medalha de ouro olímpica por Rafaela Silva, menina da Cidade de Deus, traz de volta, com renovado vigor, a retórica da superação que o caminho do esporte, como expressão máxima do poder transformador do mérito, é capaz de propiciar.

O fato de Rafaela ser negra, de família pobre e oriunda da favela, serve como uma luva à narrativa de que pelo esporte é possível “escapar ao caminho da violência”, e o judô seria a atividade ideal para transformar a “violência que ela trazia da comunidade em força para vencer na luta”.

Difícil dizer o que choca mais: se é a falta de respeito e cuidado com os milhões de crianças e famílias que moram em favelas e periferias e que lutam cotidianamente contra a violência do Estado e do tráfico (as quais frequentemente se confundem) para construir uma vida digna baseada na valorização da escola e do trabalho, e que são insultadas com a suspeição de que caso não bafejadas pela sorte de um projeto salvacionista cumpririam um destino inexorável; ou se é a desfaçatez com que se assume a violência das comunidades como um dado natural, tal como um desígnio de deus, contra o qual nada se pode fazer.

Quem conhece as armadilhas do debate sobre a favela sabe o quanto tem sido difícil romper com esse círculo vicioso, de uma narrativa que tanto opera com uma sociologia vulgar, que toma o território (a favela) como determinante de um comportamento violento e potencialmente criminoso – a velha máxima “o meio faz o homem”; quanto com uma psicologia igualmente vulgar, que procura explicar as exceções pelo talento e pela perseverança individual, mas nunca pelos efeitos virtuosos que a família e a vizinhança podem ter para a sua formação.

Como destruir esse mito que mantém a política à margem do coração do drama urbano brasileiro?  Não há caminho fácil, mas algumas apostas podem ser feitas. A que parece mais promissora é aquela que aponta para o caráter transformador da recente mobilização dos estudantes secundaristas em diversas cidades e estados do país.

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-ouro-de-rafaela-silva-e-a-fabula-da-meritocracia